A Rússia atual não é potência semelhante à finada União Soviética. Estive em Moscou, em 1980, no auge do poder comunista, passei dias na cidade e outros tantos na distante república do Uzbequistão, depois dos Montes Urais. Conheci cidades calmas.
A capital do império soviético se destacava como enorme burgo com belos parques, sem bares, restaurantes e outros modos de diversão. Nas ruas, a calça jeans brasileira fazia sucesso. Era comum oferta para comprá-las. Tudo muito quieto e bem policiado.
Havia em Moscou, na época, duas lojas comerciais. Gum e Zum. Numa havia roupas e coisas de casa. Na outra todo o resto que as pessoas precisavam. Não havia moda. Tudo era planejado. Tinha o mês do azul, do branco e os modelos eram sempre os mesmos.
Transporte público excepcional, educação pública de alto nível e assistência de saúde oferecida pelo Estado alcançava a todos. Mas, se um cidadão soviético decidisse comprar um carro, teria que fazer um pagamento inicial e esperar pelo menos cinco anos para receber o veículo.
A Rússia de hoje não é nada parecida com este cenário cinzento descrito no parágrafo acima. Moscou é uma cidade efervescente, cheia de grandes hotéis, bares maravilhosos, ótimos restaurantes e diversão para todos os gostos e preços. É um país capitalista. Tão capitalista quanto seu parceiro, a China, que visitei em 2019.
Encontrei em Pequim uma noite movimentada, cidade enorme, organizada, segura e com lojas das melhores marcas do mundo, enormes centros de compras. O alegado confronto entre capitalismo e comunismo está fora do esquadro. Reflete nostalgia política. A guerra da Ucrânia opõe questões estratégicas. Mas todos os protagonistas são capitalistas. Cada um à sua maneira.
As democracias liberais estão sob ataque. China e Rússia são governadas por autocratas no poder há muito tempo. Sem oposição. Partido único. Imprensa controlada. Na China, o Partido Comunista é hegemônico. Na Rússia, não há liderança comunista. Existe a figura do líder, que controlou o Congresso deles (Duma), aniquilou inimigos, cooptou a Igreja e está no poder por mais de duas décadas.
Mas há uma diferença fundamental: nos últimos 40 anos, a China não se envolveu em nenhum conflito. No máximo, ameaçou e exibiu sua capacidade de destruição, mas não foi à guerra.
Os russos cometeram suas guerras. A última delas, na Síria, foi uma espécie de treino para a atual invasão da Ucrânia. Ali eles testaram equipamentos e suas melhores estratégias. Mas aparentemente não aprenderam as lições. Estudiosos da doutrina militar afirmam que os russos estão cometendo erros atrás de erros. A situação surpreende porque Moscou enviou a Ucrânia os líderes militares que atuaram no Oriente Médio. Gente experiente.
Lá, o apoio russo foi fundamental para virar o jogo político. Foi neste confronto, por exemplo, que eles corrigiram a precisão de seus mísseis. Utilizaram aviões Su-25 e Su-34 em larga escala.
Na Ucrânia, segundo especialistas, os russos ignoraram sua própria doutrina e enviaram pequenas unidades, sem comando unificado. Na realidade, Putin previu que a população da Ucrânia receberia os soldados de braços abertos. Seria uma ocupação sem dor, sem violência, quase uma anexação. A guerra prevista para durar dois ou três dias se prolonga por mais de uma semana. Milhares de mortos. E já está em curso a negociação para fazer o cessar fogo.
Uma certeza o observador brasileiro pode ter à distância. A primeira vítima nesta guerra, como em qualquer outra, é a verdade. Ninguém sabe ao certo o que está se passando no teatro dos combates. Nem o que está sendo negociado.
A ameaça nuclear pode ser rebatida pelos ocidentais com outra ameaça nuclear. A população civil sofre e a diplomacia encontra espaços ínfimos. O Itamaraty colocou o embaixador Lineu Pupa de Paula, que opera na Bósnia, para trabalhar em conjunto com o embaixador Norton Rapesta.
Os russos estão chegando e, apesar de todos os erros, deverão prevalecer. A assimetria do poder de fogo é abissal. Moscou perdeu a guerra da informação no Ocidente. Putin é o agressor. Dentro de casa, com a imprensa controlada, ele é o salvador da Ucrânia que estaria sendo dominada por nazistas.
As narrativas vão brigar no noticiário dos jornais e emissoras de televisão em todo o mundo. Essa guerra, porém, pode se tornar símbolo do fim de uma era. No mundo, cada vez mais digital, não há distância, nem limitação de tempo. Os aparelhos celulares criaram milhares de repórteres. Informação ao vivo.
Nós, neste canto de mundo, vamos pagar o preço com inflação e desimportância. A posição do presidente Bolsonaro, uma neutralidade a destempo, vai gerar consequências nas próximas eleições. Os países europeus vão sofrer, a Rússia vai pagar preço elevado, qualquer que seja o desenlace da guerra.
A China, afinal, terá a oportunidade para crescer sobre os escombros do velho mundo.
André Gustavo Stumpf é jornalista e escreve no Capital Político.