Minha vida tem Graça (A Crônica de Domingo)Heron Cid

Quase em procissão, nossa comitiva saía e dois quarteirões abaixo encontrava a melhor comida daqueles tempos. A marmita de dona Mírian era um maná para aqueles estudantes e moradores do Pensionato de Cida, no Castelo Branco III, feito eu. Rivânio, de Limoeiro do Norte (CE), Hebert, de Natal (RN), Michel, de Pombal (PB) e Boaz, de Campina Grande (PB), eram alguns dos comensais.

Mas aquela delícia só batia no meu estômago por uma providencial provisão do casal Graça, minha prima, e Campos, já devidamente estabelecidos e família formada em João Pessoa. Era Campos quem toda semana estacionava trazendo aquela quantia salvadora e definitiva para o rapaz sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo da República de Marizópolis.

Mais tarde, quando a filha do ainda estudante de Jornalismo da UFPB ameaçava nascer, foi Graça, novamente quem percebeu a falta de enxoval, cômoda, berço e aquelas coisas mínimas que toda criança precisa. Até que um dia, no quartinho do fundo do quintal de Dona Maria e abrigo da precoce família, a prima chegou com tudo. Herla, a primogênita, já podia nascer com dignidade.

Uma generosidade que, na verdade, já tinha precedente. Na década de 70, o mesmo casal, um jovem bancário e uma professora, acolheu Marizete, a menina de Nuita, filha de pais separados, em Pau dos Ferros (RN). Lá, menina de dez a doze anos de idade morou e estudou.

Anos mais tarde, a já mãe Marizete encontrou em Catolé do Rocha (PB) e, de novo, na casa de Graça e Campos um ponto de apoio para tratar o filho de saúde frágil e quase sempre enfermo. O menino carecia se alimentar melhor, de frutas e verduras, coisa escassa no número 18 da Rua Ana Rocha, e de tomar diariamente antibióticos e injeção contra uma nova pneumonia.

Foi com eles também que João Pessoa se apresentou. Numa dessas férias escolares de meio do ano, desembarcamos no Bairro dos Estados de junho chuvoso. Guardo as imagens afetivas e o sabor do jambeiro da vizinha que Hernon e eu, de cima do muro, capturávamos aqueles frutos rosados e brincávamos de ser feliz.

Décadas depois, Deus providencia o reencontro com o casal. Dessa vez, nada mais a pedir. No retrovisor da memória, só uma voz para reconhecer e agradecer, olho no olho, de viva voz. E em vida, quando o coração pode bater, a cabeça pode reviver, os olhos podem marejar e o peito pode abraçar e as mãos podem ser erguidas aos céus e estendidas ao horizonte com uma certeza: minha vida tem Graça.