Autoridades da Rússia e da Ucrânia devem se encontrar na Turquia na quinta. Há algo a negociar? Vladimir Putin disse quais são as suas exigências para o fim do ataque. Quer que os ucranianos cessem o que chama “atividades militares”; que inscrevam na Constituição a sua condição de país neutro — que não vai aderir à Otan — e que reconheçam a Criméia como território russo e Donetsk e Lugansk como territórios independentes. No que respeita à pauta, isso devolve a questão para o período pré-guerra. Sei que é óbvio, mas cumpre lembrar: agora a guerra existe.
Consta que Volodymyr Zelensky, o comediante que virou “Churchill” — e pensar que o Churchill que não usava camiseta tinha um refinadíssimo senso de humor… —, chamou a proposta de “ultimato”, mas disse que vai conversar. Será? Nada faz crer. A Otan está entupindo de armas a Ucrânia. O “líder da resistência” ainda quer a zona de exclusão aérea, que provavelmente não terá, e caças russos, que seriam, vamos dizer, amealhados entre as ex-repúblicas socialistas que agora pertencem a Otan. Mas não lembrem que a aliança está na raiz desse conflito porque dizem que isso corresponderia a endossar os motivos de Putin…
Que se afirme mais uma vez com clareza: o líder russo cometeu um crime segundo as leis internacionais. A questão é saber o que se fará a partir dessa obviedade. Até agora, a decisão de EUA e União Europeia é a de alimentar a guerra. Fazem-no fornecendo armas de ataque ao país invadido — e não apenas de defesa; trata-se de um fato, não de uma ilação — e buscando estrangular economicamente o país invasor. Ora, se as personagens são essas, nada mais justo do ponto de vista moral, certo?
Ocorre que, como alertou, com correção, Ronaldo Costa Filho, embaixador do Brasil na ONU, essas escolhas servem para alimentar a guerra, não a paz. É uma questão objetiva. O entusiasmo da imprensa do “mundo livre” (e isso inclui a brasileira) é de tal sorte que os números superlativos do desastre vão sendo ignorados.
É provável que Putin esteja encontrando mais dificuldades do que imaginava, mas isso, convenham, é um chute. Não li em lugar nenhum declaração sua dizendo que seria fácil. O que é fato? Em 12 dias de conflito, ele já domina boa parte da Ucrânia que importa, está às portas de Kiev e provocou um movimento de refugiados que chega a 1,5 milhão de pessoas. E que se note: esse número só não é maior porque a dita “democracia ucraniana”, que faz disparar o coração de alguns dos nossos colunistas, proíbe que homens entre 18 e 60 anos saiam do país: têm de ficar para “lutar por sua pátria” — ainda que não queiram.
Quando foi a última vez que a imprensa ocidental elogiou um líder por obrigar seus cidadãos a participar de uma guerra? Nas democracias, isso costuma ser tarefa das Forças Armadas. No caso de movimentos revolucionários ou de resistência, a adesão há de ser voluntária. Zelensky, o churchilliano, exige sangue, suor e lágrima de cada homem nessa faixa etária, todos obrigados a se separar de suas respectivas famílias. Putin é o culpado, sim, da invasão. O sequestro da vontade de muitos milhares é obra do “tragicomediante”.
Havendo o fogo do inferno, não tenho dúvida de que Putin acabará indo pra lá. Até que não aconteça, faz sentido tentar excluí-lo, inclusive, das negociações para pôr fim à guerra? Isso é de uma sandice sem limites. Naftalli Bennett e Narendra Modi, primeiros-ministros, respectivamente, de Israel e Índia, estão sendo hostilizados porque tentam abrir o diálogo com aquele que é um dos personagens centrais da crise. É demencial.
Vejam o caso da Turquia. O país só está sediando o encontro de cúpula porque mantém boas relações com Rússia e Ucrânia (faz fronteira marítima com os dois), censurou com dureza a invasão, mas se opôs à avalanche de sanções. O mesmo fez o Itamaraty. Com correção.
Fosse uma tertúlia filosófica, vá lá. Mas não é. Milhões de vidas estão na mira. A coisa pode ganhar contornos ainda mais graves — porque a questão já andou tangenciando o conflito nuclear. Quando os soldados americanos entraram no Iraque, o general David Petraeus, que estava muito mais para falcão do que para pomba, lançou uma questão — ou dúvida — que ficou famosa e que só foi respondida pela história: “Digam-me como essa coisa acaba”. Ninguém sabia e, em muitos aspectos, não acabou até hoje.
Joe Biden e os, como chamarei?, “líderes” europeus já se propuseram algo parecido sobre a Ucrânia? A menos que Putin seja deposto por uma conspiração interna envolvendo as Forças Armadas e os ditos “magnatas” — e não parece que seria prudente torcer por isso —, vai continuar por um bom tempo à frente do governo da Rússia. Alguém acha mesmo que se deve impor a asfixia econômica, com práticas que correspondem à invasão de território por outros meios, a quem dispõe do arsenal de que ele dispõe?
Não! Não estou dizendo que se deve ceder à chantagem de Putin porque ele tem um monte de ogivas atômicas. Estou lembrando ao distinto público que gente assim não se rende num ritual de humilhação. Não se rendendo e não havendo nem a interlocução, a consequência se mede em mortos. Até agora, não houve ataques indiscriminados a populações civis. Mas isso sempre depende do andamento da guerra.
Digam-me cá: dado o contexto, parece razoável que a União Europeia tenha decidido dar início nesta segunda ao pedido de adesão da própria Ucrânia, da Moldávia e da Geórgia? A integração exige o voto unânime dos 27 Estados. Ainda que houvesse a unanimidade, não seria para já. Zelensky, note-se, assinou o pedido quatro dias depois do início da invasão russa. O nome disso é provocação barata que custo caro.
O que disse mesmo o tal general? “Digam-me como essa coisa acaba”.
RACISMO, SIM!
Refugiados são refugiados, não importa a cor de sua pele ou sua religião. São vítimas. Aplausos a todos os países que estão de braços abertos para os ucranianos — a Europa inteira, sem exceção.
Há pouco mais de dois anos, Hungria, Polônia e República Tcheca foram acusadas pelo Tribunal de Justiça Europeu (TJE) de desrespeitar as leis do bloco aos se negar a receber migrantes e refugiados. O porta-voz do fascistoide governo polonês disse então:
“Garantir a segurança de nossos cidadãos é o objetivo mais importante das políticas do governo. As ações foram ditadas pelos interesses dos cidadãos poloneses e pela necessidade de proteção contra a migração descontrolada”.
No dia 4 de setembro de 2015, pelo menos mil imigrantes foram impedidos de embarcar em trens na estação internacional de Budapeste, na Hungria. Tiveram de sair do local. Deram início a uma marcha rumo à Áustria. A fronteira fica a 175 hm; Viena, a 225 km. Muitos pretendiam alcançar a Alemanha.
Pelo menos três mil refugiados estavam, digamos, concentrados num campo improvisado na estação ferroviária de Keleti. Trezentos outros confinados em Roszke, perto da fronteira com a Sérvia, conseguiram escapar. A tropa de choque da Polícia impediu que outros 2.300 deixassem o local.
É verdade! A Ucrânia não tinha um ditador como Saddam Hussein ou como Bashar Al Assad nem escondeu Osama Bin Laden. Mas que culpa tinham os iraquianos, os sírios e os afegãos que fugiam dos ditadores ou das guerras que a própria Otan ajudava a promover?
Que as mulheres, as crianças e os idosos ucranianos sejam bem-recebidos por todos.
E, no entanto, a discriminação racial existia e existe. Perguntem aos negros que tentam deixar a Ucrânia.